Antes do Pódio, vem a Atitude: o legado de Jorilda e Nadir Sabino

Duas primas, uma mesma origem humilde e uma trajetória marcada pela coragem, superação e amor à corrida. Jorilda e Nadir Sabino transformaram barreiras em impulso e escreveram, com os próprios passos, um dos capítulos mais emocionantes do atletismo em Mato Grosso.

117
0

Mato Grosso viu florescer, nas pistas de terra batida e no asfalto quente de Cuiabá, a história de duas atletas que transcenderam o esporte. Primas, companheiras de treino nos primeiros anos e ícones de uma geração, Jorilda Sabino e Nadir Sabino não são apenas nomes gravados nos anais do atletismo brasileiro; elas são a personificação da ATITUDE.

Vindas de famílias humildes, com raízes no Paraná mas corações fincados no bairro Pedregal, em Cuiabá, desde a infância, Jorilda e Nadir compartilharam mais do que o laço familiar. Compartilharam o despertar para o atletismo nas aulas de educação física, os treinos sob o sol mato-grossense na pista da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a descoberta de um talento que as levaria a conquistar o Brasil e o mundo. Jorilda, a “Cinderela Descalça”, que assombrou a São Silvestre ainda menina; Nadir, a “Rainha da Corrida de Reis”, recordista absoluta da prova mais tradicional do estado. Suas trajetórias, embora únicas, entrelaçam-se na demonstração de uma força de vontade inabalável, na superação de barreiras financeiras e sociais, e na paixão visceral pela corrida.

Jorilda Sabino: A Cinderela descalça

Jorilda aos 12 anos, em segundo lugar na São Silvestre. No lugar mais alto do pódio a atleta olímpica portuguesa Rosa Mota

Nascida em Umuarama, no Paraná, Jorilda Sabino veio muito nova a Cuiabá juntamente com a família, fincando raízes no bairro Pedregal. Sua infância, como ela mesma descreve, foi marcada por brincadeiras de rua, uma simplicidade que contrastava com as dificuldades financeiras enfrentadas pela família numerosa. O esporte entrou em sua vida de forma quase casual, primeiro através do handebol na escola, onde admite não ter tido muito sucesso, e depois, de maneira definitiva, pelo atletismo.

Seguindo os passos da irmã mais velha, Jorilda começou a frequentar os treinos na pista da UFMT aos nove ou dez anos. O projeto social da Associação Atlética Uirapuru, idealizado e conduzido pelo lendário treinador Expedito Sabino (que viria a ser uma figura paterna e mentor), não oferecia apenas treinamento, mas também um café da manhã que, para uma criança de família pobre, era um grande incentivo. Mais do que a nutrição, Jorilda encontrou ali um ambiente onde se divertia e se sentia pertencente. “No Atletismo me encontrei, me divertia muito e gostava de estar naquele ambiente”, relembra.

A transição de brincadeira para competição foi rápida. Sua primeira prova foi a Maratoninha da UFMT, organizada pelo próprio Expedito. Logo vieram as viagens para competições, um fator que, segundo Jorilda, a motivou a treinar com ainda mais afinco. A perspectiva de conhecer novos lugares e vivenciar o ambiente das provas alimentava sua dedicação. Em casa, o apoio era constante, especialmente da mãe, que incentivava a filha a perseguir seus sonhos nas pistas.

O talento nato de Jorilda, aliado à disciplina dos treinos, logo a destacou. Com apenas 12 anos, já competia de igual para igual com atletas veteranas. Foi nessa época que seu nome ganhou projeção nacional de forma impactante. Na tradicional Corrida Internacional de São Silvestre, em São Paulo, a menina franzina de Mato Grosso surpreendeu a todos. Correndo descalça, como estava acostumada a fazer nos treinos e nas ruas do Pedregal por falta de condições para comprar tênis adequados, ela cruzou a linha de chegada em um impressionante segundo lugar, atrás apenas da renomada atleta olímíca portuguesa Rosa Mota. A imagem da jovem corredora de pés descalços no pódio da mais famosa corrida do Brasil marcou a imprensa e o público, rendendo-lhe o apelido que a acompanharia por toda a carreira: “Cinderela Descalça”.

Sobre correr descalça, Jorilda revela uma dualidade interessante. Embora a falta de recursos fosse um fator inegável, ela afirma que também gostava e se sentia confortável correndo assim. “Era acostumada a praticar corrida descalça, venho de uma família muito humildade, acostumei a correr na rua com o pé no chão”, explica. Anos depois, refletindo sobre o período, ela reconhece o ato como uma forma de resistência, mesmo que na época sua única intenção fosse simplesmente correr. “Na verdade, hoje em dia, até posso te dizer que era uma forma de resistir. Mas, naquele tempo, não era isso que eu pensava. Eu era uma criança de nove anos que só pensava em correr.”

Essa ATITUDE de simplesmente fazer o que amava, apesar das circunstâncias, foi a marca inicial de sua carreira. A falta de equipamento adequado não a impediu de competir no mais alto nível e de mostrar ao Brasil o talento que brotava em Mato Grosso. A “Cinderela Descalça” não era apenas uma história de superação financeira, mas um testemunho da pura paixão pela corrida e da determinação em seguir em frente, com ou sem sapatilhas.

Jorilda Sabino: sua trajetória

A performance na São Silvestre foi apenas o cartão de visitas de Jorilda Sabino para o cenário nacional e internacional. Sua carreira foi recheada de conquistas expressivas. Ela dominou a Corrida de Reis em Cuiabá, vencendo as quatro primeiras edições consecutivas, de 1985 a 1988, um feito que a consagrou como ídolo local. O carinho da torcida cuiabana, como ela menciona, sempre teve um significado especial.

Seu talento a levou a competir em diversos países, representando o Brasil na Europa, Ásia (Japão e Coreia do Sul) e em quase toda a América Latina. Em 1985, no Chile, estabeleceu dois recordes sul-americanos na categoria sub-18 (menor) nas provas de 1.500 e 3.000 metros, marcas que, segundo a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e a própria atleta, perduraram por impressionantes 30 anos. Essa longevidade dos recordes atesta a excepcionalidade de seu desempenho ainda na juventude. Além disso, acumulou pódios e vitórias em campeonatos Sul-americanos Juvenis e Adultos e em Meetings de Atletismo.

No entanto, a trajetória de sucesso não foi isenta de obstáculos. O principal desafio, recorrente em suas falas, foi a falta de condições. “Eu não tinha uma alimentação adequada para o nível de treinamento que fazíamos na época”, conta Jorilda. A falta de material esportivo adequado e de suplementação, itens essenciais para atletas de alto rendimento, também eram barreiras constantes. Ela reconhece a ajuda crucial de pessoas como o Professor Expedito Sabino, que ia além do papel de treinador, oferecendo suporte material e alimentar dentro de suas possibilidades.

Após mais de 20 anos de carreira profissional, Jorilda Sabino estabeleceu-se em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, há mais de duas décadas. Formada em Educação Física, ela canalizou sua paixão e experiência para formar novas gerações. Atua como treinadora em um projeto municipal, trabalhando tanto com iniciação esportiva quanto com rendimento.

Recentemente, a vida impôs a Jorilda um novo e duro desafio: um diagnóstico de câncer no início de 2024. Mas a mesma ATITUDE resiliente que a levou aos pódios impulsionou sua luta pela saúde e mais uma vez ela venceu! “Quem é atleta sabe, principalmente de alto rendimento, é pauleira todos os dias e isso me ajudou sim a lutar, acho que o atleta é mais resiliente”, afirma, sem nunca perder o sorriso ou pensar em desistir. O atletismo, sua grande paixão, continua sendo o que brilha os seus olhos, a força motriz que a impulsiona a superar todos os obstáculo.

Nadir Sabino: A Rainha da Corrida de Reis

Assim como sua prima Jorilda, Nadir Sabino também tem suas raízes no Paraná, tendo chegado a Mato Grosso com a família na década de 70 e se estabelecido no bairro Pedregal, em Cuiabá. Sendo a quinta de doze irmãos, sua infância foi vivida entre os estudos, as brincadeiras de rua e a ajuda nos afazeres domésticos em uma família grande e com recursos limitados.

O saudoso treinador Expedito Sabino e a Nadir Sabino

O esporte também surgiu no ambiente escolar, mais especificamente nas aulas de educação física ministradas pelo professor Luís Bola. Nadir relembra com carinho desses momentos, onde a turma era incentivada a correr em volta da escola durante o aquecimento. “Quem consegue correr vai correndo, quem não vai correr vai andar”, era a instrução. Foi nesse cenário, junto às primas Jorilda e Joelma e aos irmãos, que seu talento começou a despontar.

Seu primeiro contato formal com a competição, no entanto, foi marcado por um susto. Nos Jogos Escolares, realizados no Ginásio Dom Aquino, Nadir, então com aproximadamente 8 anos, estava escalada para correr os 400m e 800m. A precariedade era tanta que o grupo de alunos foi caminhando da escola até o local da prova, usando o dinheiro do vale-transporte para comprar lanche, pois passariam o dia todo lá. Na prova dos 400 metros, a jovem Nadir passou mal e desmaiou a poucos metros da chegada. “Eu acho que foi falta de alimentar, tomar um bom café da manhã “, recorda, atribuindo o incidente à má alimentação.

Apesar do revés e da preocupação dos professores, a ATITUDE resiliente de Nadir já se manifestava. Contrariando a recomendação de ir para casa descansar, ela insistiu em permanecer e competir. A teimosia valeu a pena: correu os 800 metros e venceu com larga vantagem, sem passar mal. Era o prenúncio da campeã que estava por vir.

Contudo, os desafios não se limitavam à pista. Em casa, Nadir enfrentou a resistência inicial do pai que era militar. Sendo a filha mulher mais velha depois de quatro homens, o pai tinha receio e preferia vê-la em casa. Foi a mãe quem intercedeu, junto com os professores Luís Bola e Expedito Sabino, que viram o potencial da jovem e a encaminharam para treinar na UFMT. Mesmo permitindo, o pai impunha regras: “Vai, mas não vai de short, vai de saia”. Essa oposição inicial, somada às dificuldades financeiras compartilhadas com a prima Jorilda, exigiu de Nadir uma dose extra de determinação para seguir no esporte.

A persistência de Nadir Sabino rendeu frutos notáveis, especialmente na Corrida de Reis. Nadir estabeleceu um reinado duradouro. Ela é, até hoje, a maior campeã da história da prova, com cinco títulos conquistados em 1989, 1990, 1992, 1996 e, coroando sua trajetória na competição, em 2005, quando finalmente ganhou o tão sonhado carro. “É a corrida de Reis, que tem um significado muito grande, porque foi onde eu ganhei o primeiro carro numa corrida”, afirma, destacando a importância da prova em sua carreira. Antes da vitória de 2005, ela relembra ter batido na trave várias vezes, ficando em segundo ou terceiro lugar, o que torna a conquista final ainda mais saborosa.

O sucesso na Corrida de Reis e em outras competições, no entanto, esbarrava na crônica falta de patrocínio em Mato Grosso. “O maior desafio que enfrentei foi a falta de patrocínio”, relata Nadir. Essa dificuldade a levou a tomar uma decisão difícil, mas necessária para seu desenvolvimento como atleta de alto rendimento: mudar-se para São Paulo e integrar a equipe da Federação Paulista de Atletismo. “Aí que eu desenvolvi mais, que eu melhorei por conta das condições, é claro, né?”. A ironia, como ela aponta, é que só depois de se destacar nacionalmente e vencer a Corrida de Reis é que surgiu o questionamento sobre a falta da bandeira de Mato Grosso em sua camiseta ao subir no pódio da prova mais famosa do estado.

Mas o esporte não trouxe apenas troféus e reconhecimento. Para Nadir, uma das maiores conquistas foi a oportunidade de cursar a faculdade de Educação Física, um sonho realizado graças ao seu desempenho nas pistas. Essa formação permitiu que ela continuasse ligada ao esporte mesmo após o auge de sua carreira como atleta, atuando hoje como em sua própria assessoria de corrida.

Mesmo sem disputar os primeiros lugares, Nadir continua participando de provas, sentindo a adrenalina da largada e o prazer de completar o percurso. Sua filosofia é clara: “Nunca desistir, persistir sempre”. É esse o conselho que deixa para todos, a crença de que, com insistência e batalha, a hora de cada um chega.

O Legado da ATITUDE Sabino

Jorilda, a Cinderela Descalça, desafiou a falta de estrutura com os pés no chão e o coração cheio de vontade. Hoje, segue inspirando, enfrentando o câncer com a mesma força com que enfrentava as pistas. Nadir, a Rainha da Corrida de Reis, venceu o machismo, a falta de apoio e as dores do corpo sem nunca perder o foco. Persistir foi sua forma de existir.

Juntas, provaram que o talento nasce onde há atitude — e que o verdadeiro legado de uma atleta não está apenas nas medalhas, mas na transformação que ela provoca ao seu redor. A homenagem a Jorilda e Nadir Sabino é um reconhecimento necessário a essa ATITUDE exemplar, uma celebração da força e da resiliência que as consagrou como lendas vivas do esporte em Mato Grosso.

Jorilda, Nadir e Noemi Sabino premiadas em corrida em São Paulo

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor, digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui