Somos parte do todo. Embora a gente possa se esquecer vez em quando, essa noção elementar evidencia como cada um de nós está conectado genuinamente com o meio, interagindo e se impactando mutuamente. O filme “O Começo da Vida 2: Lá Fora” explora essa relação íntima entre as crianças e a natureza para fazer um alerta: é urgente cuidar do planeta e da infância. Agora, não depois.
No novo capítulo da franquia, especialistas das áreas do meio ambiente e da infância apontam como viver para além dos muros e buscar uma reintegração saudável com o mundo natural faz parte da cura para os maiores desafios da humanidade (não, não é tarde demais!). Além disso, famílias e crianças de diversas culturas (Brasil, México, Chile, Peru e Estados Unidos) compartilham suas experiências sobre a vivência e o amadurecimento em torno do meio ambiente. Esse olhar dedicado a múltiplas perspectivas, somando ciência e observações empíricas, mostra que a transformação coletiva ainda pode revolucionar o futuro, oferecendo melhores condições de vida, saúde e bem-estar para todos.
“As crianças nascem com a sensação de afiliação ao mundo natural, reconhecem a natureza como seu habitat, têm um sentimento biofílico de pertencer e uma atração inata pelo o que é vivo”, comenta Laís Fleury, coordenadora do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana. Ao mesmo tempo, a cada criança que nasce é a natureza se manifestando outra vez, como sintetiza uma garotinha no filme:
“Nós viemos da terra, não é a terra que vem de nós”
“Se a criança não tem acesso ou tem pouco acesso a interações com o meio ambiente e com os seres vivos ao redor, essa atração vai se fragilizar. Por outro lado, se ela tiver experiências diretas na natureza durante a infância, o vínculo se fortalece”, comenta Laís. Esses vínculos guardam a potência transformadora, pois “é o sentir-se parte que nos faz desejar proteger o mundo”. Ao “garantir vivências positivas e significativas para – e com – a natureza, inspiramos atitudes de cuidado com a Terra e respeito ao patrimônio natural, educando adultos futuros mais conscientes e dispostos a fazer escolhas melhores para preservá-lo”, diz. Como lembra Estela Renner, produtora do filme, “a natureza já existia antes de nós, somos parte dela, não dominadores do que ela é e produz”.
“Se mudarmos o começo da história, mudamos a história inteira”
Mas, se destruímos o ambiente, estamos destruindo a infância. Afinal, infância e natureza mantêm uma estreita relação de troca, em que ambas as partes ganham ou perdem. “Devolver às crianças a chance de viverem uma infância livre, saudável e rica em natureza também é uma forma de cuidar do bem-estar do planeta”, sinaliza Laís Fleury.
O desafio, que já enfrentava menos espaços verdes nas cidades e grandes centros urbanos que insistem em nos separar do mundo lá fora, subindo muros contra a violência e “encaixotando” experiências em nome da proteção, se intensifica com a chegada inesperada da pandemia da Covid-19, uma crise que escancara as desigualdades que sempre atravessaram nossa sociedade e acentua ainda mais as consequências físicas e psicológicas da privação de estar ao ar livre na vida das crianças.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, cada cidade deve ter, no mínimo, 12 m² de área verde por habitante. Em São Paulo, uma das cidades mais populosas do mundo, cada pessoa tem acesso a apenas 2,4 m² de natureza.
“A urbanização, um processo que pouco valoriza o desfrute da vida natural, reduz as áreas verdes e tem os veículos automotores como a principal forma de locomoção, submete as crianças a um estilo de vida confinado, institucionalizado e dirigido”, comenta Laís. “O contexto urbano da América Latina é muito hostil para as crianças brincarem do lado de fora, sujeitando-as à falta de interação com a natureza e ao excesso de contato com a tecnologia”.
A desconexão com a natureza e a maior conexão com a tecnologia trazem uma série de impactos negativos para o desenvolvimento e a saúde das crianças: altos índices de obesidade, diabetes, déficit de atenção, estresse, ansiedade, depressão e até miopia. “Ficar muito tempo em casa sem acessar o ar livre também tem relação direta com a imunidade, pois, sem contato com microorganismos, as crianças terão mais dificuldade para enfrentar infecções futuras”, alerta a especialista.
O convívio com as múltiplas formas da natureza e a organicidade de seus elementos durante a infância ajuda a restaurar o bem-estar; fomenta a criatividade, a iniciativa, a autoconfiança, a convivência, a tomada de decisões e a resolução de problemas; além de ser uma oportunidade de movimento por meio do brincar livre e espontâneo, gerando força e coordenação motora ao mesmo tempo que combate o sedentarismo e previne a obesidade.
Assim, mais do que repensar o uso da internet, pois ela nos ajuda a manter contato com quem está longe e permite que as atividades escolares sigam remotamente, é importante defender o direito à desconexão das telas para acessar outro direito, o de se conectar com o entorno – explorar folhas secas, dar novos significados a um punhado de terra e sentir a chuva são parte da experiência criativa de uma infância com memória de verde e mais liberdade para criar universos.
A responsabilidade por estabelecer equilíbrio entre natureza e ambientes digitais deve ser intersetorial. Nas escolas, extrapolar o ensino tradicional preocupado com provas e notas, e considerar espaços a céu aberto e áreas de aprendizagem fora das salas devem ser prioridade no planejamento de retorno às aulas presenciais com o coronavírus ainda em circulação. Também os planos diretores precisam pensar cidades promotoras de saúde, que incentivem o acesso e o usufruto de áreas verdes, distribuídos de forma igualitária e mais próximos da porta da casa de cada pessoa, defende Laís Fleury.
“Garantir o direito das crianças ao contato direto e cotidiano com a natureza é um desafio sistêmico que demanda uma mudança de paradigma”
Como é o “lá fora” que a gente quer?
A saudade de estar lá fora em contato com o verde e ocupar os espaços junto de outros corpos é um denominador comum. Para dar conta dessa nova realidade que se instalou mundo afora, o filme incluiu um epílogo em que as crianças refletem sobre o isolamento social, o estado de confinamento, a redução dos horizontes e a restrição em acessar o meio ambiente. Enquanto a relação segue atravessada pela pandemia, “O Começo da Vida 2: Lá Fora” convida a gente ao exercício de fechar os olhos e imaginar como é o “lá fora” que queremos e assim damos o primeiro passo para concretizar o sonho que sonhamos juntos.
No movimento de escolher o que devemos deixar para trás ou incorporar nesse novo mundo, o filme abre a janela para a “reflexão sobre a relação que vínhamos mantendo com o espaço público e natural das cidades e como reinventar essa experiência de modo a proporcionar o contato da criança com ambientes mais saudáveis”, propõe a diretora Renata Terra.
A pesquisa Emoções Momentâneas (programa Cidades Globais, da Universidade de São Paulo, junho de 2020) investigou como a pandemia vinha alterando a relação dos sujeitos com os espaços públicos em São Paulo. Entre os dados recolhidos, 86% dos entrevistados manifestaram a vontade de ocupar praças e parques, uma considerável valorização pelo estar do lado de fora em contato com a natureza.
Ao se engajar nesta rede de transformação cultural e social, narrativas audiovisuais como “O Começo da Vida” ajudam a disseminar informação por meio de histórias e sensibilidades. É através do afeto, essa capacidade de tocar o outro a partir da humanidade que nos habita, que podemos mobilizar pequenas atitudes e, pouquinho a pouquinho, começar a derrubar muros, desencaixotar experiências, libertar a infância e salvar a natureza. Se há verde em nossas memórias de infância, é preciso defender que a cor seja possível nas memórias das próximas gerações.
Como sugere Estela Renner,
“Pode ser muito pequeno plantar uma sementinha em casa, mas pode ter o mundo ali dentro”