*Por Bruno Romano
O rótulo de “ícones” da cena mundial da corrida em trilha é muito pouco para definir esse raro e precioso grupo de heroínas off-road. Como se não bastasse vencer duríssimas ultramaratonas (e ainda deixar homens comendo poeira), elas também completam desafios que pareciam impossíveis, inspiram pessoas por onde passam e estão mais unidas do que nunca para abrir novos caminhos para a modalidade
A poucos passos da linha de chegada, Núria Picas mal consegue respirar, o caminhar trôpego dessa experiente corredora e multiatleta espanhola – uma metáfora da sua corajosa vida esportiva até aqui – é ovacionado pela multidão que toma conta das ruas de Chamonix, na França, palco da mais cobiçada ultramaratona do planeta: a anual Ultra-Trail du Mont- Blanc (UTMB). De longe, seu andar manso parece uma merecida curtição nesse momento tão especial. Mas, de perto, se revela pura necessidade. Núria está um caco, e há horas vem se arrastando morro abaixo. Rompendo todos os seus limites, só tem forças para sorrir. É seu gesto final para coroar o maior sonho na vida de uma corredora de montanha.
O inédito e sofrido título da UTMB, celebrado no começo de setembro deste ano, desentala da garganta de Núria, 40, dois vice- campeonatos, em 2013 e 2014. Três meses antes desse verdadeiro ápice na carreira, a espanhola da Catalunha arriscava a pele no Makalu (8.481 metros), nos Himalaias, em busca da sua primeira ascensão acima dos 8.000 metros. Tudo ia bem, até que fortes dores no peito e uma enorme dificuldade para respirar, já perto dos 7.900 metros de altura, a fizeram descer para salvar a própria pele – em Chamonix, ela relatou que perto da chegada “se sentia em um 8.000”.
Equilibrando-se na corda-bamba entre a glória total e o fracasso quase mortal, Núria faz parte de um grupo raro de atletas que tem elevado (e muito!) o nível de um esporte que há uma década quase não contava com mulheres na elite. No mundo das ultramaratonas em trilhas, corredoras como ela unem uma determinação fora de série a uma paixão imensurável pelo ambiente outdoor. Tamanho esforço tem ajudado a construir uma nova e inspiradora imagem do trail running – na qual as mulheres são protagonistas.
“Corremos mais com o coração do que com as pernas”, diz Núria, sobre mais gente que tem escolhido esse mesmo rumo. Em destaque, nomes como a brasileira Fernanda Maciel, a norte-americana Rory Bosio e a sueca Emelie Forsberg. “A relação que temos entre nós é de irmandade”, completa a catalã. Por trás do acúmulo de vitórias, de fãs e de recordes por onde passam, há outro ponto em comum que as conectam: estarem sempre dispostas a chacoalhar com as estruturas da modalidade, perseguindo caminhos que pouca gente havia sequer imaginado.
Foi assim que a libertária via das corridas em trilhas se abriu para a mineira Fernanda Maciel, 37, há pouco mais de dez anos. Ao largar de vez seu trabalho como advogada e concentrar toda a energia no esporte, começou a fazer história. Em 2012, tornou-se a primeira mulher a correr por toda a extensão do autêntico Caminho de Santiago de Compostela, deixando para trás 860 km em dez dias, um novo recorde. Na sequência, venceu provas de respeito no Brasil e no exterior, como a Ultra Trail Mt. Fuji, no Japão, com 169 km. Mais recentemente, em 2016, foi pioneira ao subir e descer o Aconcágua (6.962 metros), na Argentina, ponto mais alto das Américas, em menos de 24 horas. Detalhe: após se recuperar de uma “surra” da mesma montanha, devido aos efeitos da altitude.
“Mesclar projetos e provas é perfeito para evoluir como atleta e como pessoa”, conta Fernanda. “Os desafios me enchem de compaixão e me testam até mais que as provas do Circuito Mundial”, completa. Enquanto escrevo estas linhas, Fernanda dá largada a mais uma etapa do White Flow, nome que escolheu para uma série de desafios que ligam montanha com temas sociais – a Favela da Rocinha (RJ) e o Nepal já foram destinos do projeto. Desta vez, ela fez sua base em um orfanato na Tanzânia para cumprir seu objetivo de quebrar o recorde feminino no Kilimanjaro (5.895 metros), montanha mais alta da África. Para isso, precisa ir ao topo e voltar em menos de 12h58 no trajeto de 72 km, alcançando o cume e baixando para a entrada oficial do parque, a 1.900 metros de altitude.
Essa poderosa mistura de competições e desafios independentes também nutre a vida da sueca Emelie Forsberg, 30, destaque na nova geração de corredoras. Dominando nos últimos anos o Circuito Mundial de Skyrunning – provas sempre acima dos 2.000 metros organizadas por uma federação à parte do mundial de ultramaratonas –, ela também soma títulos em ultras do nível da Transvulcania (73 km) e da Ultra Pirineu (110 km). Até hoje, Emelie detém o recorde mundial, cravado em 2013, na subida e descida do Mont Blanc, percorrendo em 8h10 os impressionantes 36 km com 4.100 metros de desnível. A versão masculina do recorde (4h57min44) é de Kilian Jornet, catalão ícone do trail running e companheiro de Emelie.
“Eu amo a atmosfera das corridas e acho incrível buscar sempre nosso melhor, afinal somos vistas por todos como atletas, mas isso não é tudo”, pondera Emelie, que em agosto de 2016 partiu para uma imersão de meses focada em ioga na Índia. Em abril deste ano, ao lado de Kilian, a sueca tentou o cume do Cho Oyu (8.188 metros), nos Himalaias, em estilo leve e rápido. Um súbito mau tempo a fez dar meia-volta nos 7.700 metros. No retorno à casa, em Tromso, na Noruega, onde cultiva os próprios alimentos e adora brincar de padeira, Emelie não deixou a moral baixar e rapidamente embarcou em sua nova onda: provas em trilha chamadas de vertical kilometer (VK), ou “quilômetro vertical”, com percursos que visam rápidas subidas com elevação de 1.000 metros. Mesmo sem ser uma especialista no assunto, venceu todas as competições nas quais se inscreveu em 2017.
Para Rory Bosio, bicampeã da Ultra-Trail du Mont-Blanc (2013 e 2104), há algo a ser levado em conta em todas essas histórias. “Essas mulheres têm um amor verdadeiro pela corrida outdoor que chega a ser contagiante”, diz ela, hoje com 33 anos. E acrescenta: “Claramente, nenhuma delas é egomaníaca, pelo contrário: querem mais é receber de braços abertos outras mulheres no esporte, encorajando-as a seguirem seus próprios sonhos”. Rory também é um bom exemplo desses espíritos livres – quase “selvagens” – que têm circulado em alta velocidade pelas montanhas mundo afora.
Conhecida por seu jeito descolado e desapegado, a californiana tem uma rotina pré-prova que inclui passar purpurina nos braços, enquanto ouve música e faz uma bizarra performance de dança. Em meio a isso, ainda realiza uma série de agachamentos e flexões, antes de parar e se concentrar por dois minutos na respiração, um ritual de relaxamento. Logo depois, costuma deixar todos comendo poeira, como na edição de 2013 da UTMB em que foi a 7ª colocada geral, incluindo nessa lista todos os homens da competição.
“Bom, para começar, eu nem me considero uma corredora de elite”, diz Rory, que mistura na rotina atual trekking, esqui, ioga e rolês com sua bike cruiser, apelidada de Alejandro. Fora das trilhas, ela se dedica ao trabalho de enfermeira pediátrica, atendendo em uma área de tratamento intensivo. Mesmo com a dupla jornada, tem dado conta de faturar provas como a The North Face Lavaredo Ultra Trail, um verdadeiro festival de sofrimento de 118 km pelas Dolomitas italianas.
Performances como essa lhe renderam prestígio entre grandes marcas do esporte. Mas os apoios e patrocínios, ainda que generosos, não a fizeram abandonar o hospital. “Correr pode se tornar algo bastante egoísta”, reflete Rory. “Passe um tempo com crianças em um hospital e você vai ver o que realmente importa”, fala. Fazendo um balanço da própria vida, ela chegou à conclusão de que prefere manter a agenda flexível entre enfermagem e viagens para corridas, em vez de correr em tempo integral. “Não seria bom para a minha saúde mental”, conclui.
É BEM AQUI QUE a trilha se divide. E que aquele papo furado de “mas elas só fazem isso da vida” escorre pelo ralo. Por mais que seus feitos mostrem o contrário, essa é de fato a realidade. “Sou uma pessoa normal que trabalha e corre”, resume Fernanda, que atualmente soma duas profissões, se dedicando à nutrição e à representação comercial de uma marca de material esportivo, algo compartilhado pela maioria dos corredores de elite. Seu dia a dia inclui uma sessão de ioga e outra de meditação, com dois a três períodos de treinamento, mesclados com horas de trabalho no computador. Some a isso as inúmeras viagens, tanto para competir como participar de compromissos comerciais com patrocinadores.
“Correr acaba sendo o mais fácil na vida de uma atleta de elite”, garante Fernanda, que em abril deste ano conquistou o bronze na Marathon des Sables, uma das mais duras competições do Circuito Mundial (para muitos a mais difícil). Estamos falando de 250 km autossuficientes no Deserto do Saara, com trajetos diários na distância aproximada de uma maratona, incluindo uma etapa de 80 km que segue noite adentro. Em momentos de provação como esse, os quilômetros acumulados em corridas de aventura, sua porta de entrada para o trail running, contam a favor. Assim como a disciplina de atividades como a ginástica, sua devoção na infância, o jiu-jítsu e a capoeira, heranças do avô e do pai de Fernanda.
Todo o suor derramado até aqui não tem sido em vão. “Cada ano mais marcas apostam no esporte e, como consequência, os atletas passam mais tempo treinando na montanha”, diz Fernanda, que mora atualmente em Coll de Nargó, na Espanha, na região dos Pirineus. “Nós que começamos há cerca de dez anos já percebemos um aumento brutal, tanto na quantidade como na qualidade das corredoras”, diz. Não para por aí. Ela também enxerga um processo natural, com mais atletas migrando do asfalto para a terra, e prevê um boom ainda maior nos próximos anos.
Não há como negar que isso tenha impulsionado novos feitos. É como se as atletas de ponta estivessem semeando um terreno fértil para suas novas concorrentes aos pódios. E é exatamente isso o que querem – ainda que costumem estar sempre um passo à frente. “Com esse crescimento inevitável, o grupo de mulheres que está hoje em evidência pode ser parte essencial em transformar a corrida em algo que todo esporte deve ser: igualitário”, acredita Emelie. No outro lado dessa mesma moeda, a sueca percebe que novas estrelas da modalidade têm brilhado tanto quanto os homens e ganhado até mais atenção em alguns casos, o que é raro em grande parte das modalidades esportivas. Sua própria história pessoal comprova a teoria.
Há pouco tempo, Emelie era completamente desconhecida na cena. Até que decidiu encarar a primeira corrida em trilha mais séria, a Fjallmaraton de 2009, em seu país natal. Com uma mochila emprestada, equipou-se com mantimentos e partiu para a missão. Antes da última grande subida, tirou da mala um bolo de chocolate que ela mesma tinha feito. Parou, então, por 20 minutos no pé da montanha para se deliciar e repor as energias. Satisfeita, acelerou o passo para terminar na 1ª colocação.
Acostumada com trekking, escalada e esqui desde a infância, Emelie divide hoje sua temporada em dois momentos: uma metade dedicada à corrida em trilha, outra ao esqui alpino. Ela ainda dá conta da vida de estudante universitária e de presentear seus 140.000 seguidores no Facebook com fotos e relatos das aventuras. Entre 2013 e 2015, logo após assinar seu primeiro contrato com uma grande marca do meio, a Salomon, ela só deixou de vencer uma dentre todas as provas que correu na Skyrunner World Series. Sua presença na cena é comparada à aurora boreal: aparece, encanta a todos e some na escuridão do inverno no extremo norte da Europa. Ainda assim, sua marca registrada nas corridas é o sorriso sincero. Não importa quão difícil seja a condição, Emelie mostra os dentes e se diverte em todo o caminho.
ESSAS MULHERES amam profundamente o que fazem. E buscam dar novo sentido a isso todos os dias, renovando o sentimento comum, poderoso e transformador. Só não podemos esquecer de que, quando o assunto é ultramaratonas, estamos tratando de um esporte brutal. O alto volume de treinos e provas pode ser mais que doloroso – algumas vezes, alcança o nível devastador, mesmo às atletas mais fortes.
Veja o caso de Anna Frost, 35, neozelandesa campeã da Skyrunner World Series em 2012, recordista na Transvulcania no mesmo ano (8h11min31) e, sem dúvida, uma das maiores corredoras da sua geração, provavelmente de todos os tempos. Em 2013, no entanto, Anna desapareceu do circuito, sofrendo com lesões e uma profunda depressão. Ela acabou dando a volta por cima, mas não é difícil encontrar casos de estrelas repentinas que ganham o topo de um pódio importante e, pouco tempo depois, se aposentam para sempre.
“Muita gente tende a pensar que tudo se resume a lindos momentos na montanha”, diz Emelie. “Na verdade, são horas e mais horas de treino sob chuva, vento e frio”, completa.
Além de passar boa parte do tempo encarando o pior do frio e do calor, Fernanda Maciel parte para outras estratégias. “Busco ajuda de psicólogos, de terapeutas e da ioga para estar mais bem preparada mental e emocionalmente”, fala.
“Por trás da glória que aparece na mídia, há muita dedicação, não apenas nossa, mas de todos os que estão à nossa volta”, conta Núria, que descobriu sua paixão por montanhas em Montserrat, região da Catalunha explorada desde cedo na companhia dos pais. Logo depois, veio o amor pela escalada. Um sonho que quase virou pesadelo depois de um acidente escalando perto de sua casa. Núria caiu de uma altura considerável e estraçalhou os ossos do pé esquerdo no chão. Previsão médica: nunca mais iria correr.
Na recuperação, a catalã apostou no ciclismo, hoje sua grande arma nos treinos de verão para dar um respiro ao impacto da corrida. Pouco a pouco foi recuperando a forma e a confiança. Em 2010, retomou de vez as corridas de montanha, vencendo sua primeira ultra em 2011, a Cavalls del Vent, no quintal de casa. No ano seguinte, consagrou- se campeã do então Circuito Mundial de Ultras, que começava a se firmar e a tomar os moldes atuais. Na trajetória até aqui, venceu duas vezes a disputadíssima Transgrancanaria, a mais recente neste ano, quando chegou ao topo do pódio da UTMB e ainda ganhou uma indigesta prova de 100 milhas em Hong Kong, parte do World Tour.
Como suas parceiras de trilha que têm puxado a evolução do esporte, Núria engrossa o currículo com desafios de cair o queixo. Em 2015, ela completou a expedição que chamou de Home to Home, ligando duas montanhas essenciais na sua vida: Carros de Foc e Cavalls de Vent, ambas na Catalunha. Para completar o trajeto de 140 km entre elas no menor tempo possível, correu 25h52min de forma ininterrupta, sobrepondo 8.829 metros de subida acumulada – quase um Everest.
PROJETOS COMO esses não são um “a mais” na vida dessas mulheres. São, de fato, a essência do que fazem e acreditam. É a consistência que dá ao grupo especial de corredoras o poder de guiar os rumos do esporte.
Em termos gerais de performance, segue a linha de nomes desbravadores da cena, como as norte-americanas Ann Trason, 57, e Pam Reed, 56. Espécie de guerrilheiras solitárias, em uma época ainda mais rara de presença de mulheres nas largadas de ultras, Ann e Pam conquistaram troféus e recordes em praticamente cada trilha que pisaram.
Ann venceu a tradicional Western States 100 Mile (160 km) por dez vezes, sendo superada por apenas um homem em duas dessas provas. Já Pam se tornou a primeira mulher a vencer a Badwater, uma ultramaratona pelo Vale da Morte, no Arizona (EUA), em 2002. Seu feito incluiu superar todos os homens, entre eles Dean Karnazes, outro ícone do trail running mundial. Pam faturou a Badwater novamente em 2003 para deixar claro que não foi “sorte de iniciante”.
A principal diferença nas novas “ícones das montanhas”, além do horizonte mais abrangente das trilhas dos Estados Unidos, é que o grande foco não está exatamente nos resultados em si. As provas ainda são objeto de desejo, embalam os treinos e as conversas dos patrocinadores, claro, mas a paixão pela corrida e a liberdade que ela proporciona têm falado mais alto. E, o mais importante: elas agora são unidas de verdade.
“Tenho uma admiração e um respeito enorme por essas mulheres, como a Fernanda, que considero uma das minhas melhores amigas”, diz Rory. “Elas são as embaixadoras que nosso esporte precisa, verdadeiros exemplos para mais mulheres, especialmente as mais novas”, segue. Emelie reforça: “A conexão e a atmosfera que criamos são muito boas, e eu realmente fico feliz quando outras corredoras atingem o máximo em suas performances, não importa qual a minha posição pessoal.”
Para Núria, as mais novas também servem de inspiração. “De cada uma absorvo coisas sensacionais: a habilidade de sofrer da Fernanda, a explosão que a Rory trouxe para a cena, a evolução constante e contagiante da Emelie”, enumera. “Nossa relação é mesmo algo sensacional, que está ajudando a empurrar esse esporte adiante”, completa. Ao analisar o que já fizeram até agora e tentar projetar os próximos passos, fica claro que muito além da personalidade, idade ou lugar que escolheram para viver, é esse espírito indomável e sedento por ar puro que embala a trupe.
“Meu maior objetivo na vida não está ligado a um resultado ou a uma meta, mas, sim, em passar o maior tempo possível na natureza, onde realmente me sinto em casa”, aspira Rory. Para Emelie, as montanhas têm o poder de trazer um novo ponto de vista para a corrida, tirando o foco do atleta e ressaltando o ambiente desafiador. “Tudo é maior que você na montanha, logo o respeito mútuo e esse sentimento de que precisamos cuidar umas das outras se tornam algo natural”, diz, antes de arrematar: “Enxergo nessas heroínas que formam a essência do trail running feminino hoje um amor verdadeiro pelo esporte e pelas montanhas. E isso é muito maior que vencer qualquer corrida”.